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Madeira morta: haverá algo morto com mais vida?

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A madeira morta é uma atriz importante neste filme que é o ciclo de vida das espécies. Habitat, abrigo, local de nidificação ou alimento, cumpre a sua função junto de aves, mamíferos, insetos e, principalmente, junto do grupo de espécies não tão visível que habita a floresta: fungos, líquenes e bactérias.

Entre 20% a 30% das espécies presentes nas florestas mundiais necessitam da madeira morta em certo momento da sua vida. Quando em decomposição, é primordial na retenção de carbono, na manutenção do ciclo de nutrientes nas florestas e na regeneração natural de espaços florestais. Existirá algo morto com tanta vitalidade como a madeira morta?

De acordo com a Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO), este subproduto natural pode ser categorizado como toda a biomassa lenhosa não viva, que apresente um diâmetro superior a 10 centímetros e que possa ser encontrada no solo, em árvores vivas ou mortas (incluindo raízes mortas e tocos).

Avistada em maiores quantidades em florestas primárias ou virgens, a madeira morta apresenta-se com relevância para a sobrevivência de fungos, líquenes, insetos, aves e mamíferos.

Os seres vivos dependentes direta ou indiretamente deste tipo de madeira são denominados saproxílicos e podem recorrer a ela com finalidade de se abrigarem, reproduzirem, alimentarem e mais.

Visando a subsistência de espécies e o prosperar do ecossistema florestal, realça-se a necessidade da existência de madeira morta com diferentes tipos de tamanho, estados de decomposição e oriundas de um avultado número de espécies de árvores diferentes. A heterogeneidade é imprescindível para a criação de dinâmicas naturais benevolentes.

Em Portugal, a conjuntura não é favorável, sendo um dos países europeus com menos madeira morta por hectare. Este dado nocivo à gestão sustentável das nossas florestas deve-se a uma cultura generalizada de recolha deste subproduto pela crença (errada) de que tem papel ativo em incêndios florestais.

O mito dos incêndios

Existe uma crença popular de que a madeira morta tem desempenhado um papel na ignição e propagação de incêndios no país. Essa conceção não é correta. É de recordar que, para ser categorizada madeira morta, o pedaço de madeira deve apresentar um diâmetro superior a 10 centímetros. Na verdade, o tipo de material envolvido em incêndios nas florestas portuguesas e seus arredores são o que apresentam diâmetros inferiores aos mencionados, não sendo, portanto, considerado madeira morta.

Está provado, inclusive, que a presença de madeira morta em áreas florestais está inversamente relacionada com a intensidade de fogos e que a mesma aumenta o intervalo existente entre reacendimentos, sendo diminuta a sua ligação com a ignição de incêndios.

Um relatório realizado pela Comissão Europeia centrado na relação de florestas primárias e madeira morta com incêndios enfatiza a sua avultada capacidade de retenção de humidade em estado de decomposição. Esta capacidade é tão maior quanto maior for o diâmetro da madeira morta em decomposição e a sua área de contacto com o solo. Este fator é relevante uma vez que a humidade complica a vida aos fogos.

Num panorama pós-incêndio, este material pode, ainda, ser utilizado para fixar e “recuperar” solos queimados.

Não obstante, é verdade que quão menor for diâmetro deste material lenhoso em decomposição – especialmente se menor que o limiar referido dos 10 centímetros de diâmetro -, menor será, também, a sua capacidade de retenção de humidade. Em climas mais quentes, como o do mediterrânio, enfatiza-se, como consequência, a possibilidade de um célere aquecimento, volatilização e ignição deste material o que pode resultar numa propagação mais rápida e ter interferência direta na dimensão e severidade do incêndio.

Uma peça importante no puzzle que é a biodiversidade.

O acumular de madeira morta em decomposição é de tamanha importância para a criação e/ou manutenção de solo. Neste caso, solo pode ser caracterizado como um recurso natural finito, cuja perda ou degradação não é, rapidamente, recuperável. Não obstante, boas práticas de gestão florestal podem acelerar o processo.

Composto por minerais, matéria orgânica e ar, constam no seu interior raízes de árvores e plantas que apresentam a tendência de libertar “açucares”. Este processo atrai microrganismos que, posteriormente, hão de desenvolver-se em seu redor.

A presença destes microrganismos é apelativa para protozoários e fungos. Estes últimos são, comummente, encontrados em solos saudáveis, associando-se e degradando matéria orgânica vegetal. Infelizmente para eles, constam no cardápio de inúmeros organismos.

Em suma, a progressiva decomposição da madeira morta resulta na sua colonização por diferentes espécies que se servem dela das mais diversas maneiras.

Entre as quais a vaca-loura (Lucanus cervus). Considerado o maior escaravelho europeu, alimenta-se de madeira morta durante o seu desenvolvimento. O seu ciclo de vida, em Portugal, é de cerca de dois a três anos dos quais uma avultada percentagem é destinada à ingestão e degradação deste material.

A ação desta espécie permite, posteriormente, que o processo de decomposição da madeira morta, efetuado por fungos e bactéria, seja mais célere.

Os pica-paus são, também eles, exemplos de animais que dependem da madeira morta em decomposição para sobreviver. O seu cardápio contempla uma panóplia de invertebrados que se desenvolvem, corriqueiramente, sob a casca das árvores.

Para além da alimentação, fazem, recorrentemente, uso da madeira morta como local de nidificação, sendo desenvoltos na criação destes orifícios, e deixando, posteriormente, o seu ninho à disposição de outras aves incapazes de os criar.

Apreciada por seres vivos (não) visíveis.

Fungos e bactérias são úteis no processo de regulação do ciclo de nutrientes florestais. Ao longo do crescimento das árvores, nutrientes vão se acumulando em troncos e ramos. Aquando da perda da sua vitalidade, organismos saproxílicos vão degradando a madeira em pedaços cada vez menores.

Porções mais reduzidas de madeira morta permitem uma decomposição mais eficiente por fungos e bactérias, decomposição essa que tem como resultado a disponibilização de nutrientes prontos a ser captados por outras plantas ou árvores.

Destaca-se, por exemplo, o caso do cogumelo (Trametes versicolor). Uma das várias espécies de fungos que se desenvolvem, exclusivamente, na madeira morta. Este fungo tem a capacidade de decompô-la em matéria inorgânica.

Podendo apresentar um leque alargado de cores, é, na medicina chinesa, reconhecido como um cogumelo com características medicinais.

 

Sabia que…

Devido à sua textura e qualidade sonora, a madeira morta de certas árvores é usada para fazer instrumentos musicais e esculturas.

Violinos, guitarras, pianos e até harmônicas são o resultado do uso deste material lenhoso, prezado, neste âmbito, pelas suas propriedades acústicas singulares, a sua estética esbelta e a sua durabilidade.

A ter em atenção!

Realça-se a importância de que, dependendo do risco de incêndio e da legislação aplicável, em períodos de limpeza, quer nas imediações de habitações quer em manchas florestais, deve remover-se, apenas, pedaços de madeira com diâmetro inferior a 10 centímetros. É inclusive aconselhável a, no decorrer da gestão florestal e, nomeadamente, nas zonas com interesse para a conservação, manter as árvores com idade particularmente avançada (longeva) e com grande porte, desde que não constituam risco de problemas fitossanitários, incêndio ou de segurança para pessoas ou bens.

Este tipo de árvores antigas, por possuírem cavidades naturais e/ou aspeto monumental, madeira morta e sobrantes de podas, assumem um papel importante para a biodiversidade, na criação de habitats para determinados grupos de fauna (aves, alguns mamíferos e invertebrados) e comunidades epifíticas.

Na Quinta de São Francisco, em Aveiro, zona florestal sob a alçada da The Navigator Company, visando providenciar habitat para diversos seres vivos que lá ocorrem, não se retiram, por norma, as toiças das árvores. Almejando o mesmo objetivo, apenas são retiradas árvores e/ou ramos caídos se for de extrema necessidade para garantir acessibilidades ou para reduzir a carga de combustíveis presentes.

Uma limpeza atenta e consciente evita a perda de madeira morta das nossas florestas, uma maior diversidade e qualidade de vida de espécies e um combate mais feroz às alterações climáticas.

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