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Incenso e mirra: tesouros de reis e da natureza

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Para os católicos, incenso e mirra são dois produtos mencionados em conjunto nesta altura do ano por fazerem parte da lenda dos Reis Magos que os ofereceram a Jesus, juntamente com ouro, aquando do seu nascimento. Comemorado a 6 de janeiro, o Dia de Reis é um bom pretexto para falarmos sobre as plantas de onde são extraídos.

Se o valor do ouro como presente é, ainda nos dias de hoje, evidente, é natural que os outros presentes dos Reis Magos, o incenso e a mirra, tradicionalmente representados por caixinhas de madeira nas mãos dos Magos, suscitem curiosidade. Há mais de dois mil anos ainda não existiam os Chás de Bebé tão comuns nos dias de hoje, mas existia já a tradição de oferecer o que de melhor se tinha ao recém-nascido. Qual seria o seu valor, à época, que fez com que os Magos, vindos do Oriente, os tivessem oferecido como tesouros? Primeiro, há que explicar o seu significado: simbolizam a identificação do ofertado como Deus e Rei. O incenso reconhece a divindade de Cristo e a mirra a humanidade e, unidas, eram as maiores riquezas e o que de melhor se poderia oferecer há dois mil anos.

Mas o que é, de facto, incenso e mirra? Sempre que é feita uma incisão no tronco e caule das espécies de árvore do qual se retiram incenso e mirra, estas reagem ao traumatismo produzindo resina, que as protege de ameaças externas, desde microorganismos, como fungos e bactérias, a animais, como insetos. Por isto, quando falamos em mirra e incenso, falamos em gomas-óleo-resinas, constituídas por glícidos (as gomas), e outros compostos lipídicos (as resinas e óleos essenciais).

Descubra mais sobre as plantas de onde são extraídos o incenso e a mirra e da sua presença na história do Homem.

Incenso e mirra através dos tempos

A história destes dois ingredientes através dos tempos é longa. Do Egito, o Papiro de Ebers (1550 a.C.), conhecido como o primeiro tratado médico, descreve 877 medicamentos, muitos deles feitos de plantas, que reconhece os benefícios do incenso no tratamento da asma, infeções na garganta ou hemorragias. Hoje, reconhecem-se as suas propriedades desinfetantes e microbicidas.

Nessa altura, já os antigos egípcios importavam o incenso para vários usos, no culto dos deuses, como perfume, usado em bolsas à volta do pescoço, como um colar, ou repelente de insetos e para o embalsamento dos corpos – a mumificação. Da mirra conhece-se a sua utilização como bálsamo medicinal, chegando a valer, na Antiga Roma, duas vezes o preço do ouro.

Mercadorias de grande valor no comércio da Antiguidade entre III a.C. e II d.C., o incenso e a mirra, juntamente com outras especiarias orientais, eram produtos que viajavam na Rota do Incenso, em Omã, declarado Património Mundial pela Unesco, que a denomina como “uma das atividades comerciais mais importantes do mundo antigo e medieval”. Assim foi por milénios, com uma viagem de dois mil quilómetros através do deserto da Arábia, desde o Médio Oriente até à bacia do mar Mediterrânico e a sul da Península Ibérica, onde começava a rota, com paragens nos impérios egípcio, babilónio, grego e romano e as suas paragens lendárias em Alexandria, Antioquia, Alepo e Constantinopla.

O Iémen, antiga Arabia Felix (ou Arábia Feliz), assim apelidada pela riqueza gerada pela região justamente pelo comércio do incenso, é muitas vezes apontada por historiadores como o local onde ficava situado o Reino de Sabá. Talvez já tenha ouvido falar na rainha deste reino? Pois bem, numa visita a Salomão, rei de Israel entre 960 e 922 a.C., a rainha, de nome Bilqis para os árabes e Makeda para os etíopes, levou os seus mais preciosos tesouros – ouro, pedras preciosas, camelos especiarias e, claro está, incenso e mirra – e ofereceu-os à Casa de Israel.

Mais tarde e a alguns milhares de quilómetros para Este, Pedanio Dioscórides (século I d.C.), considerado o pai da farmacologia, médico e autor da obra De Materia Medica, enciclopédia e farmacopeia sobre ervas, cataloga o conhecimento sobre os medicamentos obtidos de plantas que conheceu nos diversos países que foi visitando, incluindo o incenso, utilizado na cicatrização de feridas e no tratamento de úlceras.

Incenso

Mas voltemos aos Reis Magos. Das mãos de Gaspar, vindo da Índia, chegou o incenso como referência à divindade de Jesus. Também chamado de olíbano ou franquincenso, ainda hoje representa na liturgia Católica a transcendência, a conexão entre o Céu e a Terra.

O incenso não vem de apenas uma espécie, mas sim de várias árvores do género Boswellia, em especial da espécie Boswellia sacra, oriundas da Península Arábica, particularmente de países como Omã e Iémen, e do Nordeste de África. Por serem exóticas, estas plantas não encontram no nosso país as condições edafoclimáticas para se estabelecerem. De aparência nodosa e contorcida, as suas raízes são pouco profundas e adaptam-se a terrenos como falésias e solos inférteis, o que, por vezes, torna arriscada a colheita.

É em abril que começa a recolha, facilitada pelas temperaturas mais altas que ajudam a seiva a escorrer com maior facilidade. No início, a seiva que sai das várias incisões, verdadeiras lesões nos caules, é clara e com uma consistência semelhante à cera de vela. Esta seiva é deixada a solidificar por alguns dias e só depois é raspada. A incisão é aberta novamente, para que se recomece o processo. No outono faz-se a colheita final do ano, que é também a mais valiosa por os grânulos serem mais claros. Este procedimento é repetido por cinco anos, seguindo-se uma pausa de outros cinco anos, para que a árvore repouse.

Hoje em dia, Omã é o país produtor do incenso mais caro do mundo, o hojari. É colhido de uma região com um microclima seco nas montanhas de Dhofar que escapa às monções de verão. É mais valiosa exatamente pela sua cor clara, tamanho e concentração de óleo essencial.

Mirra

O rei Baltazar chegou de África trazendo mirra, uma oferta reservada apenas aos profetas. A mirra (Commiphora myrrha), conhecida ainda por mirra-arábica, árvore-de-mirra, incenso ou mirra-verdadeira, é uma espécie de árvore de porte médio, que cresce até aos cinco metros. É originária da África e do Sudeste Asiático, que ocorre também na Índia e na Tailândia. Pertence à família das Burseraceae e do seu género existem ainda outras espécies medicinais, como a Commiphora abyssinica e Commiphora molmol.

De aroma exótico que exala da casca e das folhas verdes caducas, irradiadas de nervuras e serrilhada, dela se extrai o óleo e a sua resina tem um uso purificador em várias religiões, sendo também utilizada em ambiente de meditação. Os seus frutos ovais e castanhos, pequenos, não ultrapassam os sete milímetros, e a polinização é feita com a ajuda das abelhas.

É uma espécie que prospera no deserto, em solos arenosos e climas quentes, secos, com sol abundante e pouca humidade e, tal como o incenso, não encontra em Portugal condições certas para prosperar.

Tal como acontece com as árvores de onde é extraído o incenso, a goma-óleo-resina extraída da mirra é uma forma de proteção contra perigos externos. Muito semelhante ao incenso, a mirra sempre foi utilizada como desinfetante e analgésico. Na Antiga Roma, o seu valor como bálsamo medicinal era tanto que o seu valor chegou a ser o dobro do valor do ouro.

É interessante observar a delicadeza das flores, pequenas e de um vermelho-amarelado, contrastando com a aparência espinhosa do seu tronco.

Poderão incenso e mirra desaparecer?

A Boswellia sacra já consta na Lista Vermelha da IUNC – União Internacional para a Conservação da Natureza como uma espécie “Quase ameaçada” (NT). Também a género Boswellia como a Commiphora myrrha são espécies encontradas no deserto. Uma das consequências das alterações climáticas será agudizar as condições também naquela parte do mundo, sendo a seca um dos sinais de alerta. Mas, na verdade, existem outras questões que estão a colocar em risco a produção destas gomas-óleo-resinas:

Excesso de pastoreio

O gado impede as jovens mudas de crescer e desenvolver-se;

Extração excessiva e ilícita

Cortadas em excesso, as plantas não sobrevivem. Deveriam ser cortadas, no máximo, 12 vezes por ano, para garantir o seu vigor, mas são agora cortadas centenas de vezes para que mais resina possa ser colhida, seca e vendida. O ritmo de exportação do incenso está a prejudicar a sua produção, o que é sobretudo visível no Norte de África e Índia, em Omã e no Iémen. A igreja Católica, os fabricantes de perfumes, de óleos essenciais e de medicamentos naturais encabeçam a lista de interessados neste produto. Isto leva à elevada mortalidade das árvores mais antigas e estabelecidas, ao mesmo tempo que as novas plantas, originárias de plantas mais fracas e, logo, de sementes de menor qualidade, sejam também elas menos resistentes.

Conflitos

A perda de habitat devido aos conflitos vividos naquela parte do mundo (Somália, Eritreia e Iémen) é outra realidade. A população, movida pela necessidade, recorre à venda de resina para obter uma fonte de renda.

Incêndios

Os incêndios que deflagram naquela zona do mundo são outra das ameaças à produção de incenso.

Para não contribuir para o seu declínio e possível extinção, é recomendado observar se o produto provém de uma cadeia de abastecimento sustentável ou se, pelo contrário, a sua procedência é desconhecida, levantando dúvidas acerca da legitimidade da sua recolha.

Sabia que

  • O incenseiro (Pittosporum undulatum) não está relacionado com o incenso. Trata-se de uma árvore perene da família das Pittosporaceae que atinge até 15 metros de altura. É originária da Austrália e, em Portugal, é considerada invasora (Anexo I do Decreto-Lei n° 565/99, de 21 dezembro), ocorrendo especialmente nos arquipélagos da Madeira e Açores graças à humidade elevada.
  • Existe também uma “mirra falsa”: a Tetradenia riparia é originária da África do Sul e, embora ofereça efeitos medicinais e o seu aroma seja interessante, não pertence à mesma família da Commiphora myrrha.
  • A palavra mirra deriva do aramaico murr e do árabe mur e significa amargo. Dela deriva ainda a palavra mirrar, ou seja, perder água ou encolher, que recorda o significado antigo de embalsamar com mirra.
  • Já a palavra incenso deriva da palavra latina incendere, ou queimar, com vários significados, desde o ato de queimar ao fumo perfumado que é libertado.
  • Os egípcios chamavam à resina sólida do incenso o “suor dos deuses”.
  • Aquando da descoberta e abertura do túmulo do faraó Tutankamon no Vale dos Reis, em 1922, entre os tesouros depositados estava uma pomada feita a partir de incenso.

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