Biohistórias

Ciência

A biodiversidade e a descoberta de medicamentos com origem nas plantas

A natureza é essencial à vida de mais formas do que as que todos conhecemos. Na descoberta de novos medicamentos, ou na redescoberta de alguns já utilizados há muito, a biodiversidade não cessa de nos oferecer o que tem de melhor. A perda da biodiversidade terá, entre outros, este grande impacto: a perda da matéria-prima essencial à saúde e bem-estar das sociedades.

Nunca conheceremos o momento exato em que os nossos antepassados compreenderam que, além de saciar a fome, um fruto poderia ter outros efeitos benéficos no corpo humano, ou que colocar ervas, folhas e flores trituradas poderia resultar na melhoria das mais variadas maleitas. Na medicina tradicional chinesa os benefícios das ervas são conhecidos há milhares de anos; um pouco mais tarde, em 1550 a.C., os egípcios listavam 877 medicamentos com origem nas plantas no primeiro tratado médico conhecido.

Começam a surgir na história moderna outros farmacêuticos que continuam a sentir-se inspirados pelas utilizações diárias das plantas na sociedade, debruçando-se no estudo dos seus compostos e, assim, alterando a forma como olhamos para a natureza para sempre. E assim, com o surgimento dos medicamentos sintetizados, já no século XX, as plantas tradicionalmente utlizadas foram sendo substituídas por fármacos.

Os primeiros destes medicamentos foram a morfina e a aspirina. Inspirado pelos efeitos do ópio, extraído da papoila-dormideira (Papaver somniferum), o farmacêutico alemão Friedrich Wilhelm Sertürner (1783 – 1841) conseguiu isolar uma substância cristalina – o principium somniferum, ou a morfina, assim apelidada pelo criador como homenagem ao deus Grego dos sonhos, Morfeu. Estávamos em 1803 e apenas em 1826 começou a ser comercializado pela Merck. Já o primeiro composto semissintético a ser comercializado foi a salicina, isolada do salgueiro (Salix alba) e que deu origem ao ácido acetilsalicílico e à aspirina, colocada no mercado em 1899 pela Bayer.

Prova da importância da biodiversidade nos tratamentos de outrora e nos medicamentos hoje desenvolvidos, o ramo da etnofarmacologia dedica-se ao estudo e sistematização dos produtos de origem natural que têm sido utilizados como remédios pelos povos, para isso recolhendo conhecimentos de áreas como a botânica, a farmacognosia, a farmacologia e a sociologia. Um estudo de 2001 indica que, em 122 compostos derivados de plantas, 80% estavam ligados às suas origens etnofarmacológicas, entre eles importantes medicamentos anticancerígenos como o paclitaxel ou a camptotecina. No total, entre 1981 e 2006, foram autorizados 155 medicamentos anticancerígenos, quase metade destes medicamentos com origem nas plantas.

Quer isto dizer que, se formos conhecer os ingredientes que as sociedades utilizavam há séculos, teremos bons pontos de partida para a descoberta de novos e revolucionários medicamentos? Indicam-nos os estudos que revisitam algumas das espécies anteriormente analisadas que é muito provável.

Enquanto isso, novos medicamentos à base de plantas – uma classe distinta, que remete para medicamentos que incluem exclusivamente substâncias ativas derivadas de plantas – continuam a ser criados e, para ser comercializados, a seguir os seus próprios procedimentos até ser autorizada a introdução no mercado.

De forma ainda mais rigorosa, também um medicamento cujos compostos têm origem na biodiversidade devem passar por várias etapas até chegar à comercialização. Depois de ser primeiramente isolado ou sintetizado, o medicamento deve ser testado para provar a sua segurança e eficácia através de vários estudos, entre eles a farmacologia, área que se debruça nos efeitos de substâncias químicas no corpo humano. No final deste procedimento está a aprovação regulatória por parte das entidades nacionais ou internacionais.

Origem dos medicamentos feitos de plantas

Da raiz à flor, da casca ao fruto, podem encontrar-se ingredientes medicinalmente interessantes em várias partes da mesma planta. Mais interessante ainda é perceber que, numa mesma planta, um dos ingredientes identificados pode ser tóxico para os humanos enquanto outro, retirado de outro elemento, pode guardar um princípio ativo com o potencial de salvar muitas vidas.

Entre os vários componentes de árvores e plantas de onde podem ser retirados princípios ativos úteis no fabrico de medicamentos contam-se:

Raiz
Dos variados tipos de raiz, de lenhosa, a herbácea ou carnuda, se podem retirar benefícios: o ginseng (Panax ginseng), na imagem, é um exemplo de raiz com reconhecidos benefícios para a saúde humana.

Rizoma
Um rizoma é um caule alongado, igualmente subterrâneo, que geralmente germina no solo de forma horizontal. O gengibre (Zingiber officinale), na imagem, é um rizoma e o gingerol, composto ativo dele retirado, oferece benefícios que são identificados pela comunidade científica.

Tubérculo
Um tubérculo é uma estrutura subterrânea e carnuda repleta de nutrientes. Um bom exemplo é o açafrão-do-prado (Colchicum autumnale), na imagem, atualmente estudado pelo seu potencial anticancerígeno.

Casca da árvore
A capa protetora da árvore é também ela possuidora de ingredientes bioativos. Bom exemplo é quina (Cinchona officinalis), na imagem, de cuja casca é retirada a quinina, com propriedades antimaláricas, antitérmicas e analgésicas.

Madeira
Da própria madeira também são retirados componentes com propriedades importantes. Da madeira de sândalo (Santalum album), na imagem, é retirada a propriedade α-santalol, com propriedades antipiréticas, antisséticas e diuréticas.

Óleo essencial
Os óleos essenciais são óleos voláteis extraídos através de um processo de destilação. O óleo de eucalipto, por exemplo, existentes em pequenas bolsas cristalinas nas folhas, é rico em eucaliptol (também chamado de cineole), conhecido pelas suas propriedades antimicrobianas, antisséticas e utilizado no tratamento de problemas respiratórios. Este óleo extraído das folhas de Eucalyptus globulus, na imagem, está agora a ser analisado por cientistas portugueses com vista a confirmar o seu potencial contra a doença de Alzheimer. As conclusões do primeiro estudo, publicado no International Journal of Molecular Sciences, apontam para que os compostos com características antioxidantes, nomeadamente o eucaliptol, mas também a quercetina, o ácido elágico e a rutina, possam trazer benefícios quer na prevenção, quer na redução de alterações cerebrais características da doença, combatendo a neuroinflamação e o stress oxidativo, apresentando-se como um possível aliado na criação de medicamentos que alterem a forma como a doença progride.

Óleo gordo
Por outro lado, estes são óleos não voláteis, isto é, não solúveis em água, obtidos através da compressão de sementes ou frutos das plantas. Enquanto alguns destes óleos têm propriedades medicinais, outros são utilizados como meios condutores de outras propriedades. Um ótimo exemplo de óleo com propriedades é o azeite, antioxidante, promove a saúde cardiovascular, é neuroprotetor e anti-inflamatório.

Folha
Também é possível retirar das folhas propriedades medicinais importantes. Da amargosa (Azadirachta indica), por exemplo, puderam até agora ser retirados mais de 60 compostos bioquímicos diferentes, como terpenóides e esteróides, e as suas propriedades anticancerígenas têm sido estudadas. Outro exemplo recente, um estudo português publicado na revista Nature Communications mostra os bons resultados da genipina, composto extraído da camarinha (Corema album), na imagem, para tratar a doença de Parkinson. Este composto é capaz de defender as células dos efeitos negativos da alfa-sinucleína, proteína responsável pelo aparecimento da doença, e até travá-la. A genipina está agora a ser testada em moscas-da-fruta, espécie com a qual o ser humano partilha muitas semelhanças genéticas.

Flor
A papoila (Papaver somniferum), na imagem, é um excelente exemplo de uma flor com inúmeros benefícios para a saúde humana: é a fonte natural do ópio e da morfina – de que já falámos anteriormente –, um analgésico forte que é sintetizado daquele. Foi primeiramente sintetizado no início do século XIX pelo farmacêutico alemão Friedrich Sertürner. A Organização Mundial de Saúde aponta para que cerca de 11% dos medicamentos considerados “básicos” e “essenciais” sejam extraídos de plantas com flor.

Semente
As sementes de cominho preto (Nigella sativa), na imagem, são reconhecidamente benéficas por vários povos do mundo. As sementes da espécie têm sido estudadas pela sua excelente resposta a variados problemas – sendo antioxidantes, anti-inflamatórias, anticancerígenas e hipotensivas –, resposta ao composto bioativo timoquinona, um óleo obtido precisamente das suas sementes.
Além destas origens, ainda se podem retirar propriedades da resina e goma e do próprio fruto.

O futuro dos medicamentos com origem nas plantas

A evolução de áreas como a Inteligência Artificial (IA) vem estimular e tornar mais célere o processo de descoberta de novos medicamentos, respondendo à procura por terapêuticas eficazes, mas também a encontrar novas possíveis utilizações para os medicamentos atuais. A revolução da indústria farmacêutica deve-se essencialmente ao acelerar destes processos, encurtando-os e tornando-os menos dispendiosos, já que há uma otimização dos recursos aliada à redução de tempo necessária a analisar, com eficácia, uma grande quantidade de dados.

Este é precisamente outro dos grandes trunfos da IA: poder cruzar informações contidas em bancos de dados com o intuito de identificar padrões complexos. Esta nova ferramenta pode ainda auxiliar a antecipar interações entre fármacos e possíveis candidatos para que sejam levados a cabo os necessários testes. Mas ainda pode ir além: ramos como a Aprendizagem Profunda (ou Deep Learning) aliados a softwares para modelagem molecular tornam possível antecipar a eficácia de compostos em análise, aperfeiçoando-os e tornando mais eficazes os ensaios clínicos, normalmente demorados.

Outra área, da medicina de precisão, em que o tratamento é personalizado segundo as características genéticas e moleculares do doente, também sairá a ganhar desta equação, já que esta análise de biomarcadores ajudará na avaliação do melhor tratamento, reduzindo-se o risco de efeitos secundários – um verdadeiro tratamento personalizado a cada doença e a cada doente. E não se pense que estamos a falar de um futuro próximo: esta valiosa ferramenta está já a começar a ser colocada em prática.

No reverso da medalha, os desafios em cima de mesa são a cooperação entre as várias áreas de especialistas – cientistas, profissionais de saúde, engenheiros de software e peritos em IA – e a descodificação da informação obtida, com uma complexidade crescente e que exige validação, certificando-se a sua fiabilidade e segurança para o ser humano. Ao cruzar todas estas questões, o resultado será uma sociedade mais sã, que vive com maior qualidade de vida.

É exatamente este incalculável valor para o ser humano que apresenta um dos maiores riscos, com a colheita excessiva de plantas: os cientistas apontam para que um quarto das espécies agora existentes possam desaparecer nas próximas duas a três décadas. A sobre-exploração pode ainda levar à escassez de certas espécies de maior valor medicinal, elevando o seu preço e tornando-as inacessíveis. A agrotecnologia, e a engenharia genética, pode vir a dar uma resposta a esta questão.

Por tudo isto, é seguro afirmar-se que o impacto da biodiversidade na nossa saúde é maior do que se pode calcular: pelas várias componentes de cada planta e árvore que podem ser exploradas, mas também pelas muitas respostas que um mesmo ingrediente pode obter perante diversas doenças. Com o Fórum Económico Mundial a identificar a perda de biodiversidade e o colapso dos ecossistemas como uma das principais ameaças à vida humana nos próximos dez anos, agir para proteger esta biodiversidade é, mais do que nunca, assegurar que as gerações futuras terão acesso a possíveis curas revolucionárias. Que outros medicamentos essenciais à continuação da vida humana a natureza ainda nos oferecerá?

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