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Veados na Serra da Lousã: uma reintrodução exemplar

Na década de 1990, os veados estavam extintos no interior centro de Portugal. Em 2022, esta região conta com uma população de mais de três mil Cervus elaphus. Nos bastidores da mudança esteve o programa de reintrodução de veados na Serra da Lousã, que o biólogo Carlos Fonseca integrou desde o primeiro momento.

Nos anos 90, havia densidades elevadas de veados em áreas confinadas sob gestão estatal, como a Herdade da Contenda (Moura) e a Tapada de Vila Viçosa (Évora), mas os Cervus elaphus silvestres escasseavam em algumas regiões portuguesas e foram considerados regionalmente extintos na Serra da Lousã.

Com um ecossistema rico em floresta, matos e recursos hídricos, esta Serra reunia condições para voltar a acolher este grande mamífero. Com esta convicção, os serviços florestais estatais (hoje ICNF – Instituto da Conservação da Natureza e Florestas), em conjunto com a Universidade de Coimbra, traçaram aquele que é hoje considerado um programa de reintrodução exemplar a nível internacional.

Carlos Fonseca, então finalista do curso de biologia na Universidade de Coimbra, esteve envolvido neste desafio desde o primeiro momento e conta-nos que, além das condições excecionais do ecossistema, foram essenciais ao sucesso da reintrodução dos veados na Serra da Lousã dois outros fatores: “o suporte científico e o apoio territorial”, com conhecimentos estruturados, e o envolvimento das populações e municípios da Lousã e Penela.

Em março de 1995, os primeiros veados da Contenda e Vila Viçosa chegaram à Lousã e o procedimento foi replicado nos anos seguintes. Até à viragem do século, terão sido reintroduzidos cerca de 120 veados e já no início dos anos 2000 foram feitas algumas outras reintroduções em zonas adjacentes.

Boa-adaptação e sucesso reprodutivo dos veados na Serra da Lousã

Logo nos primeiros anos, a monitorização permitiu confirmar “a boa-adaptação dos veados ao território da Serra da Lousã, assim como o seu sucesso reprodutivo”, revela o biólogo, investigador e professor que, no início dos anos 2000, transitou para a universidade de Aveiro, instituição que passou a coordenar os trabalhos relacionados com este programa de reintrodução.

“No início, a tecnologia GPS ainda não estava muito desenvolvida e era com colares VHF que acompanhávamos os animais”, conta Carlos Fonseca. Mesmo com tecnologias mais rudimentares (como o VHF, do inglês “Very High Frequency”, que funcionava em sinal analógico, numa frequência de onda eletromagnética), o acompanhamento foi feito e os indicadores revelaram que estavam reunidos os fatores essenciais ao crescimento da população.

25 anos depois de iniciado o programa de reintrodução dos veados na Serra da Lousã, a respetiva população estava estimada em mais de 3 mil indivíduos e a área que lhes serve de território foi-se inclusive alargando, até ultrapassar os limites geográficos que tinham sido inicialmente estabelecidos, entre o rio Mondego (a norte), o rio Zêzere (a sul), a autoestrada A1 (a oeste) e a Serra da Estrela (a este).

O sucesso da reintrodução dos veados na Serra da Lousã não se fez, no entanto, sem percalços, revela Carlos Fonseca, que continua a acompanhar esta população e está envolvido em vários outros projetos de conservação, como, por exemplo, a revisão do Livro Vermelho dos Mamíferos de Portugal Continental (2019-2022), com a coordenação da equipa dedicada aos mamíferos e ungulados. Neste Livro, “os veados são considerados uma espécie Pouco Preocupante”.

Veados na Serra da Lousã

Desafios e valorização dos veados na Serra da Lousã

Quando o número de animais começou a aumentar, já no século XXI, houve alguns relatos de veados em hortas e quintais, e a aceitação do programa de reintrodução pela população foi, em certos casos, substituída por alguma apreensão.

Quem se deparou com um destes mamíferos nas suas terras, ou próximo das suas casas, receou pelos prejuízos nas culturas que os ajudam a subsistir e até mesmo pelo confronto físico. Iniciaram-se então alguns protestos face a tão ampla presença dos veados e as associações de caçadores juntaram-se ao debate, sugerindo que a caça poderia ajudar à solução.

A sugestão foi equacionada, estudada e aceite. Nasceu, assim, pela mão da então Direção-Geral das Florestas e da Universidade de Aveiro, o primeiro Plano Global de Gestão do Veado na zona da Lousã, que fez o levantamento da realidade da espécie e determinou quotas de abate nas zonas de caça em torno da Serra. O coração desta região (11 mil hectares) manteve-se intocado e a funcionar como um santuário, para que a população de veados na Serra da Lousã continuasse a consolidar-se, mas em seu redor, a caça passou a ser permitida.

Feita de forma ordenada, a caça ajudou a limitar o crescimento excessivo da população de veados, suscetível de criar conflitos com a população, e, em paralelo, dinamizou a atividade cinegética. Este foi um primeiro passo para que a sociedade compreendesse a relevância do regresso desta espécie à Serra da Lousã, em termos ecológicos e socioeconómicos.

Desde então, o veado tornou-se num símbolo da Serra da Lousã e num dinamizador da região. “O veado está hoje presente nos logotipos de dezenas de negócios locais e até no selo da Câmara Municipal da Lousã. É um elemento de valorização das Aldeias de Xisto e levou ao nascimento de inúmeras empresas, nomeadamente na área da animação turística, com inúmeras atividades de observação e fotografia de natureza”, refere Carlos Fonseca.

A ampliação do território onde se movimenta a população de veados da Serra da Lousã traz hoje mais um desafio de conservação: “a expansão desta população, pela Serra de Alvéolos e Muradal, coloca-nos perante a possibilidade de um cruzamento com uma outra população, a do Tejo Internacional, que tem níveis muito elevados de tuberculose” (chamada tuberculose bovina, que afeta várias espécies, incluindo ungulados). Em 2022, não existe registo da doença na população da Lousã e mantê-la saudável é um complexo desafio, mas uma prioridade.

Veados na Serra da Lousã

Velhos e novos factos sobre os veados e a caça

  • Separados há milénios pelos Pirenéus, os veados na Península Ibérica não são iguais aos do resto da Europa. Têm diferenças genéticas e são mais pequenos, o que não invalida o facto de serem os maiores mamíferos silvestres atualmente existentes em Portugal: chegam a pesar mais de 170 quilos e a ultrapassar os dois metros de comprimento. Como em quase todas as espécies de mamíferos “há um gradiente latitudinal no continente europeu e, em geral, os animais da mesma espécie são mais pequenos na Península Ibérica”, elucida Carlos Fonseca. Neste caso específico, o especialista indica mais uma diferença: as hastes dos veados ibéricos são mais curvadas.
  • Historicamente, foram trazidos para reservas de caça portuguesas exemplares maiores e mais majestosos, com origem em países mais a norte, uma realidade que hoje não se coaduna com os objetivos de preservação do veado ibérico, indica o investigador. Até meados do século passado, estes exemplares de grandes dimensões eram muito cobiçados, mas também os portugueses, mais pequenos, o eram: no passado, a sobre-exploração humana, incluindo caça desregrada, terá contribuído para a redução dos veados na natureza.
  • A caça ao veado está, desde há muito, relacionada com a captura do macho, nomeadamente pelas suas hastes, que constituem um valorizado troféu. Características várias das hastes – como a dimensão, o peso e outros indicadores –refletem a saúde e porte dos animais, assim como as boas condições do ecossistema onde vivem (ou a falta delas). Desde que começou a exploração cinegética dos veados da Serra da Lousã, os animais caçados passaram a constar do ranking nacional, com classificações muito elevadas, o que constitui mais um bom indicador do sucesso do programa de reintrodução, revela Carlos Fonseca.
  • O ordenamento genético ajuda a angariar recursos financeiros que podem e devem ser aplicados no conhecimento e conservação da natureza e biodiversidade. Um exemplo é “a análise genética das hastes caçadas, feita em colaboração por universidades portuguesas e espanholas, que tem ajudado a desvendar a origem destes animais e permitido confirmar se estamos perante exemplares ibéricos. Principalmente quando são hastes muito grandes, poderão ser provenientes de outra subespécie”, refere Carlos Fonseca. A conservação dos veados ibéricos requer que se evitem entradas e cruzamentos com animais de outras regiões, o que equivale a dizer de outras subespécies, para conservar o património genético e não colocar em risco as características destas populações bem-adaptadas ao ecossistema.

 

Saiba mais aqui sobre o veado e as características desta espécie da família dos ungulados.

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